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“É o vínculo com pessoas, não com telas, que nos protege, salva e fortalece.”

TRagora 1 ano atrás
A psicóloga Jessica Luz destacou a importância dos pais estabelecerem limites no uso da internet.

A crescente exposição às telas e a facilidade de acesso a conteúdos inapropriados e aos perigosos na internet têm preocupado pais e educadores, o que tem gerado consequências no mundo real como ansiedade, depressão, isolamento e ideações suicidas entre crianças e adolescentes. Diante desse contexto, a recente notícia de ataques a crianças em ambiente escolar, possivelmente orquestrados pela internet, só aumenta o medo e a insegurança dos pais em relação à proteção dos seus filhos. “Para apontar caminhos sobre como agir neste cenário, o TR desta semana conversou com Jessica Liz, psicóloga com formação em Terapia Cogntivo-Comportamental para crianças e adolescentes e pós-graduação em Psicologia Positiva. Jessica destacou a importância dos pais se cuidarem para poder cuidar bem dos filhos e de se estabelecer limites claros em relação ao tempo de exposição às telas e ao uso da internet. Além disso, ela recomendou que os pais estejam sempre atentos às atividades online dos filhos.
TR – Qual trabalho você desenvolve para auxiliar no desenvolvimento de crianças e adolescentes?
Atuo há oito anos com a psicologia clínica e trabalho com a promoção e intervenção em saúde mental
TR – Nesse processo, como a família é envolvida?
Com crianças e adolescentes, em todo o processo. Quanto mais nova a criança, mais frequente e próximo é o contato com a família. Com adolescentes, o acesso à rede familiar pode ser uma chave importante nas mudanças necessárias.
TR – O que você tem observado no consultório nos últimos anos, sobretudo após a pandemia?
Com o público infanto-juvenil? Um uso excessivo de telas e a sua relação com o aumento de sintomas depressivos e ansiosos, com destaque para o isolamento social, a automutilação, e a ideação suicida.
TR – A internet é uma vilã no desenvolvimento emocional das crianças e adolescentes?
Da forma como vem sendo utilizada, sim, pois de fato se associa a prejuízos que comprometem o seu desenvolvimento. Crianças e adolescentes com uso desregrado da internet são privadas de experiências sociais que possibilitam o aprendizado de habilidades importantes para a nossa formação socioemocional; têm hábitos de sono e alimentação cada vez mais afetados pelo padrão de uso; estão expostas a riscos diversos como o ciberbullying, publicidade desregulada e disfarçada, disseminação de fakenews, conteúdos inapropriados, contato com estranhos, grupos de extremismo político que espalham ódio e violência, estes últimos, inclusive, como base responsável pelo movimento crescente de atentados à escola; ou seja, um ambiente altamente arriscado, que, sem a devida supervisão/orientação/educação, compromete a saúde integral de crianças e adolescentes, resultando em transtornos diversos.
TR – Quais aspectos comportamentais as famílias podem observar para evitar que o uso da tecnologia se torne algo ruim?
É fundamental observar e preservar aspectos importantes para o desenvolvimento saudável, como hábitos de sono, alimentação, brincadeira, tempo ao ar livre e na natureza, atividade física regular, socialização, atividades acadêmicas. Se a tela não assume o lugar dessas atividades e é bem administrada, então ela pode ser útil. É impossível pensar o mundo hoje sem a vida digital, mas se a vida digital toma um tempo/espaço desproporcional, aí não se tem mais realidade.
TR – O medo da relação com os “amigos virtuais”, da interação com desconhecidos na internet tem atormentado as famílias, quais cuidados podem ser tomados neste sentido?
O ideal é que crianças estejam afastadas de aparelhos celulares e de redes sociais até, aproximadamente, 12 anos de idade. O uso de outras telas deve ter supervisão direta do conteúdo acessado, e alerta já presente aos riscos mencionados. Após essa idade, recomenda-se que se mantenha o acompanhamento do que é consumido, inclusive com acesso a senhas e aplicativos que facilitem a supervisão de quem, de fato, precisa supervisionar.
TR – Muitos pais/cuidadores se queixam que não conseguem acessar as emoções, se comunicar com seus filhos, qual caminho/mecanismo pode ser utilizados para melhorar essa relação?
Que tal começar acessando e expressando as suas próprias emoções? Cuidando de como se sente, o que pensa, fala e faz. Crianças e adolescentes já desligados terão ainda mais dificuldade de se conectar se o padrão é predominantemente de queixas, cobranças e reclamações. A autoridade parental é importante, sim, limites são imprescindíveis, e podem ser colocados de maneira respeitosa e gentil. O caminho para construir uma relação é pela via do afeto, da confiança, do diálogo que respeita mutuamente, e dos limites que apontam até onde se pode ir.
TR – Os pais também precisam desligar as suas telas?
Parece muito contraditório delimitar os limites de uso dos menores e manter um padrão desregulado nos adultos. A aprendizagem pelo exemplo é das mais poderosas. Manter as telas distantes das refeições; sentar-se para brincar ou observar, também sem telas; convidar para atividades ao ar livre; estar próximo ao adolescente para conversar ou fazer atividades do seu interesse. Estar inteiro, olhar nos olhos, se expressar. Não dá para fazer isso com o olho no celular.
TR – Quais sinais podem indicar um quadro de ansiedade ou mesmo depressão nessa fase?
Padrão de humor deprimido na maior parte do tempo, irritabilidade, mudanças no apetite e no sono, sensação de inutilidade e culpa, automutilação, ideação suicida, preocupação intensa, sinais físicos de desconforto (tremores, sudorese, tonturas, náuseas, dores de cabeça), medo de morrer, choro descontrolado. Se atentar ao mínimo aparecimento desses sinais, conversar sobre e buscar ajuda profissional.
TR – Como retomar a conexão e fortalecer as relações familiares para oferecer um ambiente mais seguro para o desenvolvimento das nossas crianças e adolescentes?
Precisamos nos cuidar para poder cuidar bem das nossas crianças e adolescentes. O que foi dito e recomendado para esse público nessa entrevista pode ser aplicado também a nós, adultos. Precisamos cuidar do nosso sono, do que comemos, do nosso corpo, da nossa casa, do nosso mundo, das nossas crianças. Voltar o olhar para esse cuidado, se atentar a tudo o que desvia desse caminho, e, nesse sentido, a internet e as telas têm um grande poder de distração, com alta descarga de dopamina no cérebro, neurotransmissor que gera prazer rápido e fácil, e que nos mantém hipnotizados, distantes da realidade, enriquecendo os grandes donos das corporações digitais que lucram com isso, e empobrecendo as nossas relações de sentido. A saída está na contramão da tela, sim.
TR – Como a terapia pode auxiliar as crianças/jovens e as famílias?
A terapia promove um trabalho de psicoeducação, conscientizando a criança, o adolescente e o adulto sobre a qualidade das suas emoções, pensamentos e ações. É um trabalho mútuo, gradual, que se sustenta no acolhimento, não julgamento, no sigilo das informações e no vínculo da relação. No fim das contas, é o vínculo com pessoas, não com telas, que nos protege, salva e fortalece.

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