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Meu amigo badameiro e sua passagem para o além

TRagora 3 anos atrás

Conhecia o ermitão Djalma do Lixo desde quando eu era apenas um garoto de calça-curta e ainda brincava na praça da Concórdia, no bairro da Serrinha, em Jacobina, lá pelos idos de mil novecentos e bolinha. Amigo de infância da minha mãe, a professora Isabel, desde os 5 anos de idade, Djalma da Serrinha, como também era chamado, foi um personagem popular na cidade, tanto pelo visual exótico e despojado quanto pela inteligência, muitas vezes esnobada e não reconhecida por alguns que se julgam superiores a nós, reles mortais.

Mas, o velho Djalma não dava bola à discriminação da mesma forma como não obedecia a convenções sociais ou a etiquetas. Muitos o tachavam de sujo, mal vestido ou acumulador, mas as ofensas nunca o envergonharam ou o fizeram desistir do ofício que durante muitos anos desempenhou com muita humildade e afinco. Confesso que desconheço se já teve outra profissão anterior a de catador, reciclador ou lixeiro, como queiram chamar, mas foi nessa labuta diária que ele se tornou conhecido de boa parte dos jacobinenses.

Por muitos anos carregou embaixo do braço um projeto de cooperativa de reciclagem de lixo na esperança de conseguir algum apoio, embora os poderosos de Jacobina sequer tiveram a curiosidade de ler. Foi quem primeiro pensou e discutiu publicamente sobre o tema aqui na cidade, tendo sido, inclusive, a principal bandeira nas três vezes em que se candidatou a vereador, infelizmente, sem obter sucesso nas eleições.

Nascido na cidade de São Paulo (SP), foi um retirante que fez o caminho contrário ao de muitos nordestinados. Ainda criança, mudou-se com a sua mãe da capital paulista para Jacobina no comecinho dos anos 60. Aqui estabeleceu-se, desde o início, no bairro da Serrinha, na época local de moradia de pessoas negras e pobres, ainda desprovido de calçamento e saneamento básico. O único luxo era a luz elétrica, gerada a motor, e que era desligada às 22h em ponto, conforme me disse um dia, em um dos inúmeros bate-papos que mantínhamos quase que semanalmente.

Homem de notório saber, aos 66 anos cursava com êxito o curso de Direito em uma faculdade local. No início deste ano, contou-me com entusiasmo que tinha sido aprovado em mais um semestre. Estudar era a sua “cachaça” e não escondia a alegria quando alguém parava para conversar, especialmente sobre política, seu tema preferido. Incontáveis foram as nossas prosas críticas sobre a política local, ali no canteiro central da Praça da Concórdia.

Djalma também tinha uma relação histórica com o Tribuna Regional desde os anos iniciais quando ainda era dirigido por Carlos de Deus. Além de leitor, era também vendedor e entregador do jornal. Já tinha clientela certa, me dizia. Toda sexta-feira nos encontrávamos para que eu o entregasse a sua cota de exemplares ainda fresquinhos, recém-saídos da gráfica. Quando não o via, jogava o pacote por cima do muro da sua casa rodeada de material reciclável, o que era motivo de constantes reclamações de seus vizinhos, algo que ele não se importava, pois, aquilo era o seu ganha-pão.
Lamentavelmente, na última vez em que nos vimos, não pude dar-lhe a atenção de sempre em virtude do corre-corre a que estamos submetidos em busca da sobrevivência. Nos falamos rapidamente, ele reclamou dos jornais que não havia recebido naquela semana e eu o encaminhei para resolver com a nova pessoa responsável pela entrega. Levava muito a sério a distribuição do jornal.

Dois ou três dias depois, recebi uma mensagem dele no zap. Estranhei porque já tinha me revelado que não sabia usar o aplicativo. Mas, lembrei-me de havê-lo orientado alguns meses antes. Como a mensagem era uma dessas figurinhas de “bom dia”, acabei não respondendo. Um dia depois soube da notícia de que fora internado às pressas com fortes dores e hemorragia.

Em virtude das notícias desencontradas, que uma hora diziam que estava vivo, em outra que havia morrido, resolvi ir pessoalmente visitá-lo na UPA. Por ironia do destino, cheguei exatamente no momento em que piorava sua condição de saúde e os médicos estavam realizando o intubamento. Não pude entrar na sala vermelha da unidade devido à situação, mas, em seguida um dos médicos me chamou e relatou que o estado dele era muito grave. Estava com hemorragia intensa e precisaria de transfusão de sangue. Por esse motivo, iriam transferi-lo para uma UTI.

Depois disso, só encontrei o dileto amigo no velório, no domingo passado (12), já prostrado no ataúde. E a minha tristeza maior foi não ter dado mais atenção a ele na última vez em que nos vimos, a mesma que lhe dedicava sempre que nos encontrávamos. Não poderia imaginar que não o veria mais com vida. E assim, o velho ermitão fez a sua passagem sem que eu pudesse ao menos me despedir dele.

Como diz Jessier Quirino, poeta paraibano, ninguém sabe se a morte é virgula, ponto-e-vírgula ou ponto final. O certo é que perdi meu cumpade e não sei quando eu vou.

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