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A alma é de Jegue, mas o coice é de mula!

J. Britto 6 meses atrás

O meu avô Gaudêncio, que integrou a primeira turma de tratoristas da antiga Suvale, em Jacobina, era homem de confiança do Doutor Orlando, ex-prefeito da cidade. Nascido em 1918, na região de Mirangaba, o velho Gode também era correligionário do coronel Francisco Rocha Pires. Tratorista dos bons, “pau pra toda obra”, era assim reconhecido pelos colegas de profissão, a exemplo de Otacílio, Norberto, Antônio Barriguinha, Tõe Peba e Seu Venceslau, os amigos mais próximos.

Parceiro inseparável do Sargento Furtado, então chefe do Tiro de Guerra, nos contava que, como Reservista, quase foi para a Segunda Guerra, em 1945, junto com os “pracinhas”. Já estariam todos preparados aguardando o embarque na Estação de Trem, quando, via telégrafo, chegou mensagem avisando que a guerra havia terminado. Um alívio para Godenço que, de lembrança, guardou a farda, as botinas, capacete, cantil e uma baioneta que muitas vezes eu pegava escondido para brincar.

Seu João Magro, que era o mecânico da Suvale, se ainda estiver vivo, pode confirmar muitas das histórias do Véi Godenço, como era conhecido entre os amigos que se reuniam com frequência no Bar de Marrudo – reduto boêmio que ficava na esquina da Senador Pedro Lago, defronte à casa de Seu Zé Marcelino e ao Cine Payayá. Era onde ele gostava de ficar nos dias de folga, tomando sua “pituzinha” com limão, fumando Continental sem filtro e contando as aventuras de caçadas, pescadas e, como não poderia deixar de ser, as histórias de valentia e destemor que experimentavam sertão adentro.

A partir da esquerda: Gaudêncio e os cabras da peste Norberto e Antônio Barriguinha; os virgulinos da Comissão do Vale, no início na década de 1950 | Fotos: Álbum de Família

Sertão de gado brabo e de gente mais brava ainda, mas que Godenço desbravou de cima do imponente MF 3366 da Suvale, abrindo estradas e aguadas em toda a nossa região. Do Massambão ao Mocambo dos Negros, do Serrote a Mirangaba, passando pelo Escôncio, indo pro Piancó e até no Genipapo da Lambança o velho Gode deixou a sua marca de trabalhador honrado, mas também de homem destemido e exímio atirador de arma longa.

Era daqueles que abatia uma perdiz em pleno voo. Aos nove anos de idade ganhei dele a primeira espingarda para desespero da minha avó, ao que ele a retrucava:

Dêxa o menino, Nêga, é do pequeno que se faz o grande!

Me ensinou a acertar uma tampinha de garrafa pendurada num varal a uma considerável distância. Até conseguir atingir o alvo com precisão, levei algumas coronhadas de canivete na cabeça (ui!):

Assim não, diabo! gastando munição à toa!

Para em seguida, com toda paciência, me ensinar a mira correta. Era assim Godenço réi, bruto, rústico, mas dotado de uma sensibilidade incomum.

Dia de eleição ele vestia seu paletó cinza, pegava o velho título, daquele que ainda tinha a fotografia do eleitor e várias dobras carimbadas a cada eleição, e saia pra votar. Era correligionário do velho Rocha Pires e assim gostava de pilheriar quando alguém o perguntava:

Seu Godenço, vai votar em quem pra prefeito?
Ele respondia:
No coroné.
– E pra deputado?
No coroné.

A brincadeira sempre terminava com boas gargalhadas. Gaudêncio podia ser bravo, mas de besta não tinha nada. Tinha o status de “funcionário federá”, igualado a quem trabalhasse na Leste Brasileiro (RFFSA) ou nos Correios e Telégrafos, e sabia que devia o seu emprego à indicação do coronel Francisco Rocha Pires e ao deputado Manoel Novais, ambos chefes políticos de outrora no sertão das Jacobinas.

Mas, Gaudêncio não hesitou quando um dia precisou ir até a propriedade de um dos grandes fazendeiros da época, dono da Fazenda Pernambucana, no Tanquinho, cobrar o seu pagamento que estava atrasado um dia apenas. À noitinha, numa roda de gente que se reunia pra conversar à beira de uma fogueira no terreiro, ele comentou:

Amenhã, ante de ir na fêra do Serrote eu passo na fazenda pra recebê o meu trocado.

Nisso, Seu Psiu, um dos moradores do lugar, preocupado, o aconselhou:

O coroné é homi qui num leva desafôro e anda com uma “mausa” no bolso do paletó! Revelou o camponês.

Gode apenas ouviu e coçou a barba por fazer.

No dia seguinte, um sábado, Godenço acordou cedo. Quando me levantei, atraído pelo aroma do café que a minha avó preparava no fogão à lenha, ele já estava no terreiro amolando a sua inseparável peixeira numa pedra de rio, tipo seixo-rolado, ao passo em que molhava e suavemente com os dedos testava o corte. Assim que me viu, enfiou a lambedeira na velha bainha de couro, botou no cofo e – depois de me conceder a sua bença – disse-me:

Tatai [que era como ele me chamava], v’umbora no Serrote. Iante passemo na casa do véi Horaço, tenho que recebê uma bistunta lá!

E assim entramos no jipe laranja e fomos em direção à fazenda. Umas três cancelas depois, nós chegamos. Lembro-me de ele ter batido à porta, uma mucama veio abrir e adentramos na sala da Casa Grande, onde esperamos por alguns instantes a chegada do “coroné”.

Não demorou muito e apareceu um senhor já idoso de chapéu e paletó branco mêi-amarelado. Ao ver Gaudêncio de pé e já com uma das mãos dentro do aió o homem logo amansou. Não sei se surpreso pela audácia do tratorista que foi pessoalmente cobrar o que lhe era devido pelas horas tratoradas, mas o fato é que o coronel apertou-lhe a mão, tirou um maço de notas do bolso e entregou a Gaudêncio que, agradecendo, rumou até à feira do Serrote para fazer o seu tarrabufado semanal.

“O risco que corre o pau, corre o machado!”, dizia ele ao responder como enfrentou essa e outras situações desafiadoras de sua vida.

Conto essa breve história de um homem do povo, que ajudou a desbravar Jacobina com o suor do seu rosto, para dizer que dele herdei o destemor e o desassombro. E talvez por isso, não me amedrontam os arrotadores de valentia.

Digo-lhes em alto e bom som que ao ser comparado a um jegue, longe de me sentir ofendido, recebo como um elogio, uma homenagem ao gonzaguiano que sou.

“O jumento é nosso irmão!”, já dizia o Padre Antônio Vieira ao defender a preservação do animal que é um dos símbolos do Nordeste brasileiro. E digo mais: Jumento soul, mas o coice é de mula! Igualmente a Gaudêncio dos Santos, meu avô e pai, não temo coronéis. Respeito-os, porque tenho juízo, mas não os temo.

Aliás, corrijo: coronel digno de respeito por essas bandas da Chapada Diamantina foi Dias Coelho. Negro, de origem pobre, que ficou rico garimpando diamantes, comprou a patente e botou muito grileiro branco pra correr do Morro do Chapéu. De tão importante para a sua época, virou até nome de uma cidade naquelas bandas.

Mas, Chico Rocha? Um aludido grileiro de terras, um oportunista político que olhava apenas para o próprio umbigo e que se escondia nas coxias do Poder para encobertar seus supostos crimes? De tão pouco expressiva figura no contexto histórico dos Sertões, que não há uma linha, nenhuma biografia, na História da Bahia que conte algo digno a seu respeito.

E qual herança bendita deixou o coronel para Jacobina? A resposta é simples e rápida: Pouca ou quase nenhuma.

Hoje é apenas um fantasma a rondar o Velho Casarão malassombrado da rua Senador Pedro Lago. E a personificação da decadência do seu coronelato é o bastardo inglório, tido como preguiçoso e presunçoso, o advogado incompetente das causas perdidas.

Um pedófilo desalmado falando em proteger criancinhas tem mais moral que ele bradando por respeito às mulheres. Pura falácia!

Desconfio, inclusive, que a fixação dele pelos jumentos – inclusive era criador da raça Pêga – seja a admiração que deva ter pela “madêra” do bicho, já que seria desprovido do tale órgão tão vital. Conta-nos uma lenda urbana jacobinense, que eu ouvia muito durante a adolescência, que o homem seria eunuco, castrado no aço de um treizoitão pela ex-mulher enciumada.

Dizem que o boi capado se torna um animal um pouco estressado. Talvez esteja aí a explicação para suas aparições públicas e opiniões sempre carregadas de bravatas e ameaças vãs. Mas a este missivista, o estressadinho, resto de cocô do coroné, fim de rama, fii de chocadêra e o representante mais estúpido de um sistema decadente, não chega nem a assustar!

Igual ao meu Vô Godenço, sou virgulinamente pacífico e “no cabo da minha enxada não conheço coroné!”

Das parença com o jegue só tenho o couro grosso e resistente, e o tamãe da chapuleta. E posso garantir que aqui tem chapuletada pra todo mundo: da direita, da esquerda, da traseira ou de qualquer lado de onde vierem as ofensas.

E para não me alongar mais, vou terminar esse conto de puríssima ficção citando dona Almerinda, minha avó, que, diferente do marido Gaudêncio, não era lá muito simpática ao coronelismo e de vez em quando, na ausência dele, ela, ironicamente, largava o doce:

Chico Rocha meu amor, meu penico de cocô!

Vovô era bruto, mas sábia mesmo era vovó.

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